“O caso Evandro” e “Homecoming”: podcasts para ouvir em streaming e assistir na TV

Já comentei mil vezes aqui que sou cria da televisão, do cinema, do videoclipe, enfim, do audiovisual, som e imagem. Talvez por isso nunca tenha sido muito adepto do rádio. Também não dirijo, ou seja, o ato de sintonizar o dial diariamente no carro não faz parte da minha rotina.


Mas para vivenciar uma das mais fortes tendências de 2019, os podcasts, programas sobre os mais diversos assuntos disponíveis nas plataformas digitais de música e afins, abri a cabeça e abracei o formato. Assim como comentei no post sobre Gay Talese, um autor que precisava conhecer, bastou uma história real de suspense para me fazer colocar os fones de ouvido.


Trata-se da quarta temporada do Projeto Humanos, intitulada O caso Evandro. Em 1992, Guaratuba, no Paraná, foi o cenário de um fato bárbaro, o sequestro de um garoto de sete anos. Dias depois um corpo foi encontrado vítima de mutilações, aparentemente parte de ritual satânico. A prisão posterior de sete pessoas, incluindo duas delas parte de um grande grupo político da cidade, dá novos rumos à história.





A partir daí, o jornalista Ivan Mizanzuk promove um exercício de storytelling, contação de histórias em bom português. E como ele transforma a narrativa, por si só já interessante, em imperdível. É uma aula. Tudo minuciosamente explicado, mas não exposto de uma vez só. Nesse jogo de esconde-esconde, nós, os ouvintes, somos informados pouco a pouco dos fatos, ficando completamente envolvidos com os temas discutidos ali.


Sabe aquele clichê de filme de detetives, um quadro com as fotos dos suspeitos, acusados, tudo ligado por documentos, linhas e fatos relevantes? Pois é assim que fica a minha cabeça quando encerro cada episódio. Ponto também para a competente masterização e trilha de Felipe Ayres, essenciais para criar o clima sombrio.





Faço apenas o aviso, presente também antes de cada início de capítulo: não recomendo para pessoas sensíveis. Sério. Fiquei com tanto medo que dormi uma semana de TV ligada. Acredito que a maior parte dos brasileiros que eram pequenos nas décadas de 1980 e 1990, como eu era, acessarão esse temor ancestral, principalmente por conta dos ecos das abduções e assassinatos de crianças (os casos Pedrinho e o Ana Lídia em Brasília são exemplos que ecoaram por anos), além daqueles crimes em que supostamente o ocultismo era praticado (alegações semelhantes, por exemplo, repercutiram também na morte da atriz Daniella Perez).




O caso Evandro já ultrapassou a marca de 20 episódios. Estou indo para o oitavo, cada vez mais ansioso, confuso e interessado, por isso não dou mais detalhes a fim de evitar cair na seara dos spoilers.





Fazendo o caminho contrário, do som à imagem, recentemente eu devorei a série Homecoming, do Amazon Prime Video, baseada em podcast de sucesso nos EUA criado por Eli Horowitz e estrelado por Catherine Keener, Oscar Isaac e David Schwimmer. O programa é responsável pela estreia de Julia Roberts no segmento. Figura classe A da sétima arte, ela segue a tendência de outros astros da película ao debutar na telinha. E com muito louvor, pois deu as caras, inclusive como produtora executiva, em material de primeiríssima classe, criado também por Horowitz ao lado de Micah Bloomberg e Sam Esmail, este último também diretor de todas as partes.


Roberts é Heidi Bergstein, psicóloga e conselheira em um grandioso complexo em Tampa, na Flórida, que recebe soldados oriundos de uma guerra não identificada, provavelmente alegórica aos mais recentes conflitos americanos em terras árabes. Tenta-se, por meio de diversas terapias, encaixá-los novamente à realidade civil. Até a chegada do combatente Walter Cruz (Stephan James).





É aí que a coisa esquenta. O suspense cresce. Mesclando passado e presente, somos apresentados a Thomas Carrasco (Shia Whigham), investigador do Departamento de Defesa tentando decifrar um enigma. O que teria acontecido na iniciativa Homecoming quatro anos depois da entrada do soldado Cruz?


Esse exercício de vai-e-volta no tempo é ilustrado com um layout peculiar, espécie de efeito televisão de tubo em algumas passagens, o que deixa tudo ainda mais misterioso (a presença de outro personagem importante, Colin Belfast, interpretado por Bobby Cannavale, complica ainda mais o enredo).





A trilha sonora, com quase todos os temas tirados de filmes, por exemplo Um corpo que cai e Todos os homens do presidente, abrilhanta ainda mais a empreitada. As composições de Pino Donaggio para Carrie, a estranha e Vestida para matar, ambas produções de Brian De Palma, me chamaram a atenção em algumas cenas (por falar em Carrie, Sissy Spacek também faz parte do elenco, tá bom?).





Em Homecoming nada é o que parece ser. Mas ao invés de investir em teorias muito fora da casinha, os materiais de trabalho são as paranoias, defeitos e qualidades do ser humano. Tudo entregue em bela embalagem. Depois de tudo isso você ainda quer mais? Ok. Outro ponto positivo: a temporada, única até agora, é composta de dez episódios, cada um com cerca de 25 minutos, meia hora no máximo.




Ah, e enquanto eu escrevia esse post, descobri que O caso Evandro vai virar série de TV. Pelo visto eu ainda vou ter que dividir muito minhas atenções entre os podcasts e a telinha…




Crédito das imagens: Projeto Humanos, Twitter, IMDb, Wired, Vox e Hollywood Reporter.

Triplo X



Um tradicional fashion statement afirma que as mulheres de hoje devem a Coco Chanel o privilégio de usarem calças compridas sem serem discriminadas. O que pouca gente sabe é que, no mundo cinematográfico, se hoje o sexo é algo comum, muito se deve a Garganta profunda (1972), produção pioneira do cinema pornô. Nome cunhado para descrever uma peripécia sexual no campo da felação, Garganta profunda figura como umas das películas mais rentáveis da história (tendo como base a relação custo/ganho, a inflação subsequente e outros fatores).


É, cara pálida. Se hoje você pode surfar na web e presenciar as maiores putarias existentes no planeta, isso é resultado direto dessa fita que ganhou o mainstream e mudou a maneira de se ver o sexo na tela grande. Para entender melhor essa história, o Loz Engelis recomenda o documentário Inside deep throat (2005), dirigido pela dupla Fenton Bailey e Randy Barbato (Party monster), produzido por Brian Grazer e narrado pelo saudoso Dennis Hopper.





Pensemos no seguinte cenário. Estados Unidos, início dos anos 1970. A revolução sexual iniciada na década anterior ainda estava aparentemente em vigor. O relatório Kinsey havia balançado os alicerces do papai-e-mamãe. A pílula anticoncepcional ganhava cada vez mais adeptas – era possível, pasmem!, transar e não engravidar. Nas praças, mulheres queimaram seus sutiãs em busca da liberdade. Vieram os ecos do maio de 1968 francês. O festival do Woodstock celebrou o amor livre. Dias melhores estavam por vir.





No entanto, a industria cinematográfica, em especial a norte-americana, ainda engatinhava em relação à libertação sexual. A hipocrisia e os “valores tradicionais da família” ainda reinavam absolutos quando o assunto era sexo. Nesse meio dicotômico, Gerard Damiano, um ex-cabeleireiro que arriscava-se em medíocres produções amadoras, quis elevar a qualidade de seu trabalho.


De uma ideia estapafúrdia, surgiu o mote para um filme de trepa-trepa explícito. Seis dias de filmagem e cerca de U$$ 25 mil de orçamento. A novata Linda Lovelace, uma garota aparentemente comum, interpretava uma dona-de-casa que não sentia prazer sexual. A moça descobriria em uma consulta com um médico fanfarrão que tem o clitóris localizado no fundo da goela. Por isso, ela só atinge o clímax ao… Bem, gente. Acho que já deu para entender. Garganta profunda estava pronto para entrar na história.








A estreia, em junho de 1972, apenas deu a faísca necessária para o início do incêndio. Chocados com tamanha falta de moralidade, os mais antiquados iniciaram uma caça às bruxas, com pleno apoio do governo Nixon. Teve início uma guerra pelas liberdades individuais dos cidadãos. O ator Harry Reems, que interpretou o médico avantajado, foi processado e condenado apenas por ter participado do filme. Anos depois, Linda Lovelace alegou ter participado da produção obrigada por seu marido e disse que “quem assiste Garganta profunda assiste ao meu estupro“.


Alguns setores da sociedade não-pornô deram seu apoio – de artigos sobre o novo Porno chic no The New York Times ao engajamento de atores como Jack Nicholson e Warren Beatty. A polêmica ainda estava no ar. Num lance de ironia do destino, Garganta profunda causou mais um escândalo, indiretamente, no meio político: era assim que o informante dos jornalistas Bob Woodward e Carl Bernstein, a dupla que desvendou o caso Watergate e causou a renúncia de Nixon, era chamado. (A história, Todos os homens do presidente, virou livro e filme).





Com um relato apurado, o documentário, que infelizmente não possui DVD em versão brasileira, vale pelas entrevistas com os realizadores e pelo intenso material de arquivo usado para a pesquisa. A narrativa poderia pender para o escatológico ou para o pedante, mas é simples e completa. Inside deep throat é nada mais, nada menos do que a história de um grupo de pessoas inconformadas com a hipocrisia do mundo. À sua maneira, eles encontraram um jeito de escancarar: botando, literalmente, a boca no trombone.