A voz humana

No audiovisual, os lançamentos se multiplicam com velocidade impressionante. Não que eu ache isso ruim, principalmente sendo também roteirista, mas, com tantos produtos por aí, o que pode ser considerado realmente inovador? Bom, parece que, às vezes, para fazer algo diferente de verdade é preciso voltar ao básico: apenas uma boa história e uma voz para contá-las. Ou algumas…

É o caso da série Calls, do Apple TV+, versão da série francesa de Timothée Hochet adaptada para os EUA por Fede Alvarez. Em nove episódios, de aproximadamente 20 minutos cada, acompanhamos tudo apenas ouvindo os personagens.

Como o nome do programa já evidencia, a trama é revelada por meio de ligações telefônicas escritas na tela em tempo real (há a opção de legendas em vários idiomas, ou dublado, não se preocupe). Sem cenas filmadas, são exibidas animações tipo descanso de tela do computador para justificar porque isso é televisão e não rádio.

A temporada tem início com “The End”, “O Fim”, com um bate-papo entre dois namorados, ele em Nova York, ela em Los Angeles. Um misterioso acontecimento afetará a vida dos dois. E de toda a humanidade. Daí, os próximos passos, à princípio aleatórios, montam esse universo em colapso.

Misto de suspense e ficção científica, Calls, que conta no elenco com Audrey Plaza, Rosario Dawson, Joey King, Pedro Pascal, Nick Jonas, dentre outros, funciona bem, principalmente nesse mundo pandêmico em que a gente também desliga a câmera sempre que possível.

Outra narrativa em áudio que recentemente me fascinou é Caso 63, podcast chileno criado por Julio Rojas. No primeiro episódio conhecemos Pedro Roiter (Néstor Cantillana). Acometido por um aparente surto psicótico, o homem será tratado pela psiquiátrica Elisa Aldunate (Antonia Zegers).

A história se complica quando ele revela ser um viajante do tempo e que voltou a 2022, ano em que se passa a narrativa, para tentar salvar a humanidade. Contar mais do que isso entra no pantanoso terreno do spoiler, algo que, vocês sabem, sou totalmente contra.

O que posso afirmar categoricamente é o seguinte: quase sempre calcado na interação entre Pedro e a Dra. Elisa, Caso 63 cresce em qualidade e também em tensão ao longo dos dez episódios com duração média de 15 minutos (e, pelo que pesquisei por aí, teremos uma segunda temporada). É uma excelente opção não só para passar o tempo, mas para treinar o espanhol. Mesmo quem possui um nível básico no idioma consegue entender quase tudo, acredito.

Mas não se preocupe se você não tem familiaridade com a língua. O podcast ganhou versão brasileira. Mel Lisboa e Seu Jorge contam a trama do Paciente 63 a partir de 22 de julho exclusivamente no Spotify.

Crédito das imagens: Wallpapersden, SheThePeople, The Upcoming, Spotify e Bruno Poletti.

Os homens que não amavam as mulheres



Já comentei aqui inúmeras vezes que sou um ávido consumidor das narrativas de true crime (sabe-se lá o motivo, sou o maior medroso da paróquia). Pois estava assistindo a mais um lançamento do gênero, — de dia, claro, porque de bobo eu só tenho a cara e o jeito de andar — e uma epifania veio como um relâmpago.


Por mais óbvio que me pareça agora, eu, outro homem branco privilegiado de classe média tentando tirar a cabeça de dentro da própria bunda, demorei muito a perceber: muitos desses casos famosos são exemplos inegáveis de misoginia, machismo, violência contra a mulher e feminicídio. Se pararmos para pensar, nove entre dez documentários, livros e séries do tipo são, em geral, sobre homens frustrados, doentes e cruéis que resolveram deixar fluir as pequenezas de suas almas aterrorizando figuras femininas.


Com essa reflexão em mente, fiz um apanhado de títulos estrangeiros recentes, disponíveis nos streamings televisivos, mais um podcast brasileiro no Spotify e YouTube. À princípio, me parece que esses produtos começaram a contextualizar esses assassinatos e atos bárbaros dando voz, quando possível, às vítimas, apontando também o papel exercido pelas forças policiais, imprensa e, obviamente, o patriarcado nesses casos célebres.




Conversando com um serial killer: Ted Bundy (Conversations with a killer: The Ted Bundy tapes)
Disponível na Netflix





Um dos mais infames assassinos em série da história americana, Ted Bundy seguiu a cartilha de muitos: rejeitado por uma mulher, buscou em todas as outras aquela que lhe o repeliu, matando as que conseguisse no meio do caminho. A diferença para muitos outros tipos abomináveis é que Bundy parecia um cidadão acima de qualquer suspeita, bem criado, bonitão, com futuro profissional praticamente garantido… Talvez seja por isso que ele exerça ainda tanto fascínio.


Essa série documental da Netflix não traz nada de muito novo ao que já sabíamos, entretanto é bem construída, roteirizada e, cá entre nós, dá um medo do caralho. Tá amarrado.




Eu terei sumido na escuridão (I’ll be gone in the dark)
Disponível na HBO





Uma dos títulos mais comentados do ano passado, essa série da HBO aborda crimes não tão conhecidos do grande público do estuprador em série que aterrorizou a Califórnia na década de 1970, cometendo também vários assassinatos. Ele ficou conhecido, dentre vários nomes, como O Perseguidor da Noite original. Ou ainda o Assassino do Estado Dourado. E principalmente East Area Rapist (O Estuprador da Área Leste).


A escritora Michelle McNamara, vidrada no tema, começou uma investigação por conta própria, contatando outros fanáticos como ela para trazer uma solução ao caso. No meio disso tudo, outra morte mexe com a investigação. Uma história surpreendente que de tão maluca parece até ficção.




O estripador (The ripper)
Disponível na Netflix





Aos que acompanham o universo do true crime, é interessante observar como essas mentes doentias e os crimes abomináveis que elas planejam são tratados fora da Meca dos serial killers modernos, os Estados Unidos. É esse o caso aqui.


Nos anos 1970, um homem mata mulheres aparentemente à esmo. Tudo acontece na Inglaterra, por isso ele logo é comparado a um Jack, o Estripador “moderno”. O programa, além de contar sobre quem eram essas vítimas, em quatro episódios se aprofunda também nas linhas de investigação do caso, principalmente nos erros. Um ponto positivo aos medrosos que nem eu: assusta, mas não demais, dá até para assistir de noite.




Praia dos ossos
Disponível no Spotify e no YouTube





Fecho a lista com um trabalho que me impressionou muito em 2020. Eu, ainda não tão adepto dos podcasts, consegui arrumar um tempo, botar meu fone e assistir um pouco a cada dia como se tivesse na minha frente… uma televisão.


A morte da socialite Ângela Diniz, a pantera de Minas, pelas mãos do playboy paulista Doca Street, é um casos mais notórios do país. O diferencial do Praia dos ossos é transformar esse conto horrível de machismo em narrativa, sempre por meio de um viés jornalístico bem apurado, editado e contextualizado, minucioso trabalho de Branca Vianna, da pesquisadora Flora Thomson-DeVeaux, além da competente equipe da Rádio Novelo.







Crédito das imagens: Praia dos ossos site oficial, IMDb e Podtrail.

“O caso Evandro” e “Homecoming”: podcasts para ouvir em streaming e assistir na TV

Já comentei mil vezes aqui que sou cria da televisão, do cinema, do videoclipe, enfim, do audiovisual, som e imagem. Talvez por isso nunca tenha sido muito adepto do rádio. Também não dirijo, ou seja, o ato de sintonizar o dial diariamente no carro não faz parte da minha rotina.


Mas para vivenciar uma das mais fortes tendências de 2019, os podcasts, programas sobre os mais diversos assuntos disponíveis nas plataformas digitais de música e afins, abri a cabeça e abracei o formato. Assim como comentei no post sobre Gay Talese, um autor que precisava conhecer, bastou uma história real de suspense para me fazer colocar os fones de ouvido.


Trata-se da quarta temporada do Projeto Humanos, intitulada O caso Evandro. Em 1992, Guaratuba, no Paraná, foi o cenário de um fato bárbaro, o sequestro de um garoto de sete anos. Dias depois um corpo foi encontrado vítima de mutilações, aparentemente parte de ritual satânico. A prisão posterior de sete pessoas, incluindo duas delas parte de um grande grupo político da cidade, dá novos rumos à história.





A partir daí, o jornalista Ivan Mizanzuk promove um exercício de storytelling, contação de histórias em bom português. E como ele transforma a narrativa, por si só já interessante, em imperdível. É uma aula. Tudo minuciosamente explicado, mas não exposto de uma vez só. Nesse jogo de esconde-esconde, nós, os ouvintes, somos informados pouco a pouco dos fatos, ficando completamente envolvidos com os temas discutidos ali.


Sabe aquele clichê de filme de detetives, um quadro com as fotos dos suspeitos, acusados, tudo ligado por documentos, linhas e fatos relevantes? Pois é assim que fica a minha cabeça quando encerro cada episódio. Ponto também para a competente masterização e trilha de Felipe Ayres, essenciais para criar o clima sombrio.





Faço apenas o aviso, presente também antes de cada início de capítulo: não recomendo para pessoas sensíveis. Sério. Fiquei com tanto medo que dormi uma semana de TV ligada. Acredito que a maior parte dos brasileiros que eram pequenos nas décadas de 1980 e 1990, como eu era, acessarão esse temor ancestral, principalmente por conta dos ecos das abduções e assassinatos de crianças (os casos Pedrinho e o Ana Lídia em Brasília são exemplos que ecoaram por anos), além daqueles crimes em que supostamente o ocultismo era praticado (alegações semelhantes, por exemplo, repercutiram também na morte da atriz Daniella Perez).




O caso Evandro já ultrapassou a marca de 20 episódios. Estou indo para o oitavo, cada vez mais ansioso, confuso e interessado, por isso não dou mais detalhes a fim de evitar cair na seara dos spoilers.





Fazendo o caminho contrário, do som à imagem, recentemente eu devorei a série Homecoming, do Amazon Prime Video, baseada em podcast de sucesso nos EUA criado por Eli Horowitz e estrelado por Catherine Keener, Oscar Isaac e David Schwimmer. O programa é responsável pela estreia de Julia Roberts no segmento. Figura classe A da sétima arte, ela segue a tendência de outros astros da película ao debutar na telinha. E com muito louvor, pois deu as caras, inclusive como produtora executiva, em material de primeiríssima classe, criado também por Horowitz ao lado de Micah Bloomberg e Sam Esmail, este último também diretor de todas as partes.


Roberts é Heidi Bergstein, psicóloga e conselheira em um grandioso complexo em Tampa, na Flórida, que recebe soldados oriundos de uma guerra não identificada, provavelmente alegórica aos mais recentes conflitos americanos em terras árabes. Tenta-se, por meio de diversas terapias, encaixá-los novamente à realidade civil. Até a chegada do combatente Walter Cruz (Stephan James).





É aí que a coisa esquenta. O suspense cresce. Mesclando passado e presente, somos apresentados a Thomas Carrasco (Shia Whigham), investigador do Departamento de Defesa tentando decifrar um enigma. O que teria acontecido na iniciativa Homecoming quatro anos depois da entrada do soldado Cruz?


Esse exercício de vai-e-volta no tempo é ilustrado com um layout peculiar, espécie de efeito televisão de tubo em algumas passagens, o que deixa tudo ainda mais misterioso (a presença de outro personagem importante, Colin Belfast, interpretado por Bobby Cannavale, complica ainda mais o enredo).





A trilha sonora, com quase todos os temas tirados de filmes, por exemplo Um corpo que cai e Todos os homens do presidente, abrilhanta ainda mais a empreitada. As composições de Pino Donaggio para Carrie, a estranha e Vestida para matar, ambas produções de Brian De Palma, me chamaram a atenção em algumas cenas (por falar em Carrie, Sissy Spacek também faz parte do elenco, tá bom?).





Em Homecoming nada é o que parece ser. Mas ao invés de investir em teorias muito fora da casinha, os materiais de trabalho são as paranoias, defeitos e qualidades do ser humano. Tudo entregue em bela embalagem. Depois de tudo isso você ainda quer mais? Ok. Outro ponto positivo: a temporada, única até agora, é composta de dez episódios, cada um com cerca de 25 minutos, meia hora no máximo.




Ah, e enquanto eu escrevia esse post, descobri que O caso Evandro vai virar série de TV. Pelo visto eu ainda vou ter que dividir muito minhas atenções entre os podcasts e a telinha…




Crédito das imagens: Projeto Humanos, Twitter, IMDb, Wired, Vox e Hollywood Reporter.